/** Código do Google Analytics */
Participe do EAE no LinkedIn Participar
Participe do EAE no Yahoo Participar

17.8.09

Um Caso De Amor Com Livros

por Bernadete Piassa

Quando eu era pequena, pensava que ler era como tomar um remédio do qual só tinha permissão para tomar uma colher por vez, mas que mesmo assim ainda tinha o poder de me carregar para um mundo encantado, onde eu experimentava emoções estranhas e proibidas. À medida em que o tempo foi passando e continuei tomando aquele remédio mais e mais vezes, eu me viciei nele. Não consegui mais viver sem ler. Os livros se tornaram uma parte intrínseca da minha vida. Eles se tornaram meus amigos, meus guias, meus amores. Meus amantes mais fiéis.

Quando eu era criança e comecei a ler, não sabia que ia acabar me apaixonando por livros. Não consigo nem me lembrar de quando ou como comecei a ler. Só me lembro que minha mãe não gostava que eu lesse. Apesar disso, toda vez que tinha uma oportunidade eu me escondia em algum lugar com um livro e lia uma página, duas páginas, três se tivesse sorte, sempre sentindo meu coração bater descompassado, sempre torcendo para que minha mãe não me encontrasse e não gritasse como sempre: “Bernadete, você não tem nada pra fazer”? Para minha mãe, os livros não tinham valor nenhum, mas para mim eles eram tudo.

Na minha infância, eu não tinha muita escolha de livros. Morava numa cidade pequena do Brasil, cercada pelo Pantanal e por fazendas. Era impossível sair da cidade de carro – não havia estradas. De trem, levava-se oito horas para chegar à próxima cidade. Havia aviões, teco-tecos, só duas vezes por semana. Livros não chegavam à minha cidade facilmente. E também não havia uma biblioteca. Mas eu tinha sorte: meu tio era piloto.

Meu tio, que era dono de uma fazenda bem grande e também trabalhava como piloto transportando passageiros de uma fazenda pra outra no seu aviãozinho, tinha aprendido a voar também com sua imaginação. Em casa, ele adorava sentar na rede no jardim e viajar com suas fantasias e todos os tipos de livros. Se por acaso ele lesse um best-seller ou um romance, quando acabasse dava o livro para minha mãe que também gostava de ler, embora não gostasse que eu lesse. Mas eu acabava lendo o precioso livro de qualquer maneira, mesmo que tivesse de me esgueirar e esconder pra poder lê-lo um pouquinho de cada vez.

Eu me lembro muito bem de uma coleção de livros. Cada um deles tinha uma capa verde com o desenho de um casal se beijando. Acho que a coleção tinha sido dada para minha mãe quando ela era adolescente porque as páginas dos livros já estavam amareladas e estragadas. Embora os livros fossem velhos, para mim eles eram mais vivos do que nunca e por um tempão eu os devorei, um por um, fazendo de conta que eu era a heroína e meu amor logo iria aparecer para me resgatar… Ele nunca apareceu, é claro. Eu é que saí da minha cidadezinha para estudar e morar no Rio de Janeiro, levando apenas minhas roupas comigo. Mas dentro de mim eu levava a paixão por livros que nunca iria me abandonar.

Eu tinha sido mandada para estudar num internato e logo fiquei horrorizada ao descobrir que a caríssima escola só para meninas tinha menos livros do que na minha casa. Na minha classe havia uma estante com quem sabe cinqüenta livros, a maior parte deles sobre a vida de santos ou de Cristo. Eu quase já tinha perdido as esperanças de achar alguma coisa pra ler quando percebi, escondido atrás, bem no fundo da estante, um livrinho coberto de poeira. Ele não parecia ser sobre religião porque tinha um nome mais curioso: “O velho e o mar”. Era escrito por um autor do qual eu jamais tinha ouvido falar: Ernest Hemingway. Intrigada, comecei a lê-lo e alguns minutos depois já estava fascinada por Santiago, o pescador.

Amei tanto aquele livro que quando fui pra casa da minha tia para passar o fim de semana, perguntei se ela tinha outros livros daquele autor. Ela me emprestou “Por quem os sinos dobram,” e eu o li aos domingos quando podia sair da escola, um pouquinho de cada vez, uma colher de cada vez…Aos treze anos, eu estava perdidamente apaixonada por Ernest Hemingway.

Quando acabei de ler todos os livros dele que eu podia encontrar, descobri na casa da minha tia Herman Hesse, Graham Greene, Antonio Callado, Edgar Allan Poe. Como eu só podia lê-los aos domingos, durante a semana eu sonhava com o mundo que eu tinha descoberto através dos livros.

Naquela época eu pensava que meu relacionamento com livros era estranho, uma coisa que me separava do mundo. Só quando li o conto “Felicidade clandestina,” de Clarice Lispector, fui descobrir que outras pessoas podiam gostar de livros tanto quanto eu. O conto é sobre uma menina gorda e feia que ainda assim consegue torturar uma das meninas mais bonitas da cidade porque o pai da menina feia é dono de uma livraria e ela tem acesso a todos os livros que possa querer. Com refinamento sádico, dia após dia, ela promete dar à menina bonita o livro que a menina quer, mas nunca cumpre a promessa. Quando a mãe da menina feia descobre o que está acontecendo e dá o livro pra menina bonita, a menina corre pelas ruas abraçando o livro. Em casa, faz de conta que o perdeu só para poder encontrá-lo, demonstrando uma paixão por livros que me deixou inebriada. Pela primeira vez eu não estava sozinha. Sabia que alguém mais gostava de livros tanto quanto eu.

Minha paixão por livros continuou através da minha vida e teve que vencer um obstáculo tremendo quando, aos trinta e um anos de idade, me mudei para Nova York. Como eu quase não tinha dinheiro, fui forçada a deixar todos os meus livros no Brasil. Além disso, meu inglês era precário e não podia ler nessa língua. Por alguns anos fui condenada novamente à escuridão; condenada a viver sem livros, meus amigos, meus guias, meus amantes.

Mas meu amor por livros era tão grande que finalmente transpus aquele obstáculo. Aprendi a ler em inglês e mais uma vez pude deleitar-me com meus autores favoritos.

Apesar de os livros sempre terem feito parte da minha vida, eles ainda representam um mistério pra mim e cada vez que abro um livro novo ainda me pergunto que prazeres vou descobrir, em que estradas vou viajar, que emoções vou viver. Será que esse livro vai me tocar como mulher, como estrangeira, tocar minha alma romântica, despertar minha curiosidade? Que horizontes vão se abrir para mim, que pedaço da minha alma será atingido, qual segredo será revelado?

Às vezes o livro me seduz não apenas pela história que conta, mas também pela escolha de palavras do autor. Lendo o conto de Gabriel Garcia Marquez “O homem afogado mais bonito do mundo” eu mal posso acreditar quando ele escreve que tinha levado “uma fração de séculos para o corpo cair no abismo”. Uma fração de séculos! Leio as palavras várias vezes, apaixonada por elas, pela sua precisão, pelo seu sentido oculto. Tento memorizá-las sabendo, ao mesmo tempo, que elas já são parte de minha alma.

Depois de ter lido tantos livros que me tocaram profundamente, cada um de um jeito especial, entendo agora que minha mãe tinha razão quando tentava me manter longe dos livros na minha infância. Ela queria que eu ficasse na minha cidadezinha, casasse com um fazendeiro rico e chato para continuar com as tradições. Mas os livros me carregaram pra longe. Eles me deram asas pra voar, para descobrir lugares novos. Eles me deram coragem pra viver um tipo diferente de vida. Eles me fizeram desejar mais, e quando não pude ter tudo com que havia sonhado, os livros ainda estavam lá para me confortar e me mostrar novas opções.

Sim, minha mãe tinha razão. Livros são perigosos, são subversivos. Por causa deles, deixei um futuro previsível por um imprevisto. No entanto, se tivesse que escolher de novo, sempre escolheria os livros em vez da vida sem brilho que poderia ter vivido. Afinal de contas, que alegria poderia ter sem meus livros, meus amantes mais fiéis?

“Um caso de amor com livros” foi publicado em inglês no livro Keys to Better College Reading, da editora Townsend Press; no livro Preparing for the New Jersey GEPA, da editora Amsco; nos livros College Writing Skills With Readings, e Writing Paragraphs and Essays da editora McGraw-Hill.

diHITT - Notícias